Cod: 268264
Angelo Gabriello Piò (1690-1769) "São Carlos Borromeu"
Autor : Angelo Gabriello Piò (1690-1769)
Época: Nos princípios do século XVIII
Angelo Gabriello Piò (1690-1769)
São Carlos Borromeu
1715-1720 circa
Terracota dourada, 31 x 21 cm
Proveniência: Nicolò II Caprara, Palazzo Caprara, Bolonha, 1724; Giuseppina di Eugenio di Beauharnais (duquesa de Galliera de 1813 a 1837), Palazzo Reale di Bologna (já Caprara), 1823; Raffaele Luigi De Ferrari (duque de Galliera de 1838 a 1876), Palazzo Reale di Bologna, 1837-1877. Provavelmente, a obra foi colocada no mercado de antiguidades entre o final do século XIX e a primeira metade do século XX.
Notas: moldura original em madeira entalhada e dourada; quatro etiquetas no verso da moldura onde são legíveis as seguintes indicações: a) Duca [di Galli]era, n. 15[…]; b) 1823, Palazzo di S[ua] A[ltezza] R[eale] La Duchessa di Galliera, Marca dell’Ambiente n. […], Marca dell’Inventario n. 1[…]63; c) Ducato di Galli[era], Inventario 1837, n. 1511; d) Palazzo R[eale] di Bologna, Appart[amento] di I° Rango, Camera n. 163, n. 1041
A obra está em um bom estado de conservação: a douradura da terracota permanece quase completa; uma rachadura atravessa transversalmente a metade superior do baixo-relevo; a figura carece do dedo de uma mão. A moldura em madeira dourada, com motivos de folhas de carvalho, é a original, e está em boas condições, apesar de apresentar uma fratura na parte superior.
Como atestado pelas etiquetas datadas de 1823 e 1837, colocadas no verso da armação, o relevo provém do Palazzo Reale di Bologna, já Caprara, sede da Prefeitura desde 1927.
O edifício foi construído por ordem de Francesco di Ercole Caprara a partir de 1561, e em 1806 foi vendido por Carlo Montecuccoli Caprara, juntamente com sua coleção, a Napoleão Bonaparte. No ano seguinte, o imperador doou o imóvel à recém-criada princesa Giuseppina di Beauharnais, e criou para ela, em 1813, a circunscrição do ducado de Galliera[1]. Após o casamento de Giuseppina com o príncipe herdeiro Oscar Bernadotte da Suécia, celebrado em 1823, uma pequena parte da coleção Caprara foi exportada e introduzida nos bens da coroa sueca. Em 1827, o marquês Raffaele Luigi De Ferrari comprou a propriedade juntamente com sua coleção, e obteve da restaurada corte pontifícia o título de duque de Galliera. Um ano após a morte de De Ferrari, ocorrida em 1876, a viúva Maria Brignole Sale doou as posses bolonhesas a Antonio Maria Filippo Luigi d’Orléans, duque de Montpensier e Infante da Espanha. Durante essa passagem «o patrimônio móvel sofreu reduções drásticas, ainda antes da cessão do Palazzo Caprara ao Estado, ocorrida em 1927»[2]; cessão que não impediu novas dispersões[3].
Graças aos estudos realizados por Massimo Zancolich nos arquivos da família Caprara, foi possível recuperar a documentação mais antiga relativa à história deste baixo-relevo[4].
No inventário de 1823, a obra é descrita como «um dito [quadro] de terracota dourada representando um São Carlos dentro de moldura como acima [entalhada e dourada]» [5], colocada em um dos quartos de dormir localizados no primeiro andar do palácio, na área naquele momento utilizada pelos Generais e separada daquela das Damas.
Com o fim da posse Beauharnais, em 1837, a obra é catalogada com um novo número de marca[6]; e é novamente mencionada no inventário de 1877, elaborado após a morte do duque Raffaele Luigi De Ferrari. Naquele momento, o objeto resulta colocado na «Grande Galleria» e é descrito como «oval em terracota e moldura de madeira dourada representando São Carlos»[7]. Além desta data, a obra não é mais rastreável.
Que o relevo já fizesse parte da coleção Caprara retomada pela corte napoleônica em 1806, é confirmado por um inventário elaborado após a morte de Nicolò II Caprara, entre 1724 e 1726[8]. Graças às leituras comparadas dos inventários de família do século XVII e XVIII efetuadas por Zancolich, pode-se afirmar com relativa certeza que naquelas datas a obra era registrada pela primeira vez: «na câmara de cantão na galeria em direção a São Salvador […] um ovato com um São Carlos de terracota dourada, e moldura de madeira dourada»[9]. Trataria-se, portanto, de uma aquisição efetuada até 1724, atribuível a um dos ciclos de demanda-oferta mais prolíficos e capilares do mercado de arte bolonhês da era barroca, o das imagens em terracota destinadas à devoção privada[10].
Por certos aspectos comparável às vicissitudes das artes plásticas napolitanas, o caso de Bolonha, parece caracterizar-se pelo interesse das oficinas em manter constante a produção de obras em pequeno formato como estatuetas, figuras de presépio, baixos-relevos, não só de invenção, mas também dependentes dos modelos das obras monumentais mais afortunadas. Por causa de seu material, tratava-se de obras acessíveis a muitos, do escasso valor econômico (o São Carlos é avaliado em apenas dez liras em 1724, e cinco liras em 1877) mas procuradas, apreciadas, e presentes sistematicamente também nas moradias aristocráticas. Dependendo de sua qualidade, dimensão, sujeito, ou destinação, podiam encontrar-se nos ambientes de representação, serem expostas nas mostras organizadas por famílias e paróquias durante as festividades religiosas, serem colocadas nas capelas privadas, ou nos quartos de dormir[11]. E é este último o caso do relevo Caprara: um cabeceira no qual São Carlos é representado frontalmente, de joelhos, em ato de oração, quase um espelho para o pregante que a ele se dirige. O autor da obra decide animar a posição da figura inclinando ligeiramente o rosto, movendo o busto e os braços de quinta, deixando escorregar para trás um joelho escondido pelas dobras do roquete que, macias, se entrelaçam entre si e se apoiam ilusionisticamente na borda do ovato. Ao reproduzir a costumeira fisionomia do santo, o artista tenta suavizar-lhe as asperezas, atenuando levemente os volumes das maçãs do rosto e do nariz adunco, insistindo antes na expressividade do olhar voltado para o alto, aberto e comovido, marcado por uma eloquente extensão da arcada sobrancelhal. Das mãos unidas aflora alguma nodosidade. A mozeta e o roquete, de uma maciez palpável, estão envolvidos em um movimento que traduz visualmente o ardor espiritual do cardeal. A superfície de fundo, como a da auréola, são decoradas através do uso de uma estaca dentada.
Os aspectos que acabamos de descrever levam a colocar a obra no âmbito da escultura bolonhesa do início do século XVIII, quando as solenidades do trabalho de Giuseppe Maria Mazza (1653-1741) são atenuadas pela sua escola com base nos resultados mais vagos e decorativos procurados pelo mestre nas obras de pequeno formato. É, em particular, o percurso juvenil do seu aluno Angelo Gabriello Piò (1690-1769) a coincidir com as características do ovato. A plausibilidade desta atribuição é ainda sugerida pelo terminus ante quem extraído da mais antiga menção inventarial conhecida. A execução deste objeto, por outro lado, não pode ser considerada muito anterior a 1724, senão por razões formais, e exatamente por volta daqueles anos Piò estava se revelando um dos novos protagonistas da plástica emiliana.
Segundo as fontes, Angelo tinha-se inicialmente aproximado de um dos primeiros alunos de Mazza, Andrea Ferreri (1673-1744)[12], que do mestre tinha absorvido os modelados mais ternos e a inclinação para a pesquisa de uma síntese formal nas composições. Sua primeira operação a nós pervenuta é o ciclo de baixos-relevos com Histórias de Cristo (assinados e datados 1711 e 1712) executados para a Companhia dos Batidos de São João em Persiceto (hoje junto ao local Museu de Arte Sacra). Entre as obras de pequenas dimensões, a segunda realização certa é o par de Camponeses do Museu Davìa-Bargellini de Bolonha, assinada e datada de 1721 (inv. 122). Entre estes dois cardinais, segundo as fontes, inserem-se uma viagem a Roma (1718) e operações em maior escala como as estátuas de Casa Cavazza (cerca de 1719) e aquelas para a igreja do Carmo em Medicina (1721).
Nos relevos persicetanos, os rostos das figuras ainda estão em forte débito com as fisionomias de Mazza, redondas, com olhos alongados e bocas pequenas. No São Carlos os traços se secam e são levemente carregados, mas não só por motivos iconográficos: lábios carnudos, maçãs do rosto expostas, frontes explicadas, olhos grandes, mãos nodosas, serão um interesse recorrente no percurso do escultor ao longo de todos os anos vinte e além, onde admitido pelo personagem retratado – lembrem-se sobretudo os Camponeses de 1721, mas também o Rei David e o São José do Davìa-Bargellini (inv. 163; 4291).
A estrutura e os drapeados complexos das figuras nas Histórias de Cristo se simplificam no São Carlos, aproximando-se daqueles dos Camponeses de 1721. Os volumes cheios das terracotas persicetanas, se afinam, adquirindo o feitio típico dos relevos maduros[13]. Subentra uma modelagem menos pictórica, mais sintética, com passagens de sombra mais esfumadas e menos vibrantes, à exceção do roquete que gera uma intermitência de cheios e vazios procurada para imitar a plissagem do linho. Permanece um gosto decorativo que se detém sobre os revés casuais nas bordas das vestes, e sobre a ideia de agitá-las as bordas, movidas pelo ar ou por um movimento, criando um desenho curvilíneo. Ulteriores sinais distintivos são o cuidado pelos detalhes acidentais como os botões semi-abertos (no São Carlos, nos Camponeses, no Rei David), ou o propósito de utilizar o perímetro dos relevos como parte integrante da narração e não como limite do relato: desde as obras primas, as figuras e os objetos podem ultrapassá-lo, ou, se apoiam – como no nosso caso.
À luz das argumentações estilísticas até aqui expostas e das comparações levadas à atenção, resulta plausível uma datação entre as Histórias de Cristo de 1711-1712 e os Camponeses de 1721. A terracota Caprara acrescenta assim uma nova refinada prova das experimentações do artista sobre este formato, dentro de tal década.
Davide Lipari